Tenho uma máquina de costura. Olho diariamente para ela, observo seu contorno, coberta por uma fronha fazendo as vezes de capa de um maquinário inútil, porque sem uso.
Sempre sonhei com uma máquina dessas. Minha mãe também acreditou nesse sonho, e no dia do meu aniversário, me presenteou com uma linda, branca e promissora Singer. No mês que vem o presente faz um ano.
Imaginei que ser dona de uma máquina de costura bastasse para que minhas mãos pequenas dessem vida às minhas grandes idéias sobre vestimenta. Acreditei piamente que, assim naturalmente, surgisse de cada tecido morto a vida em um belo vestido de bolas, ou em uma camisa de alfaiataria, babados, debruns (meu amigo, não deixe de ler esse texto, pois pode ser interessante), enfim, que o instrumento seria rapidamente vencido pelo talento que sempre julguei natural para a moda e seus feitios.
Qual não foi minha surpresa ao perceber que não sou capaz de ligar a máquina, e que uma costura reta, assim com se estivesse colando uma pipa (arraia), fosse impossível para minhas mãos desajeitadas. Percebi o vazio da ferramenta, da incapacidade da matéria de por si só dar movimento às idéias.
Essa constatação, confesso, deixou-me um toque de melancolia. Pensei nas inúmeras ferramentas que se tornaram inúteis ante a minha impaciência para decodificá-las até o limite do necessário, e nos tecidos que se transformaram em molambos sem forma.
Os objetos têm alma, se os que usam lhes conferem a alma da utilidade. Objetos conquistados e parados simbolizam nossa inércia diante das possibilidades, marcam o tempo passado sem explorar os desejos e as ideias. Sinalizam, e isso é muito cruel, o excesso diante da falta que nos cerca.
Olhei ao meu redor e vi canetas compradas pelas cores, secas, sem poesia; relógios parados, alheios à doçura das horas felizes; roupas que nunca me caíram bem; livros não lidos e lidos; comidas que não me apetecem; fotos que nunca imprimi; lembranças perdidas; palavras frias engolidas e abandonadas; quinquilharias as mais diversas, para todos os gostos, sepultados em fundas tumbas da inutilidade. Pontos mal dados, feitios inseguros.
Meus olhos continuaram perseguindo um sentido na rua, onde a vida parece revelar o avesso da costura. Na penumbra, como todos os fantasmas urbanos, enxerguei uma mulher que separava o lixo. Ferozmente escavava a lixeira, arrancando dali cada possibilidade de ganho futuro. Seus gestos eram mecânicos e duros. Cavava sem fé, sem gosto, mas com o ânimo da raiva.
De vez em quando, entretanto, as mãos pareciam dotadas de elegância e carinhosamente recolhia algo que não merecia o lixo. Parava tudo, e com todo cuidado limpava seu tesouro e o guardava em ambiente separado. Curiosa, aproximei-me. Finamente alinhados, potinhos coloridos descansavam próximos à iluminação do jardim de entrada de um prédio luxuoso. Eram embalagens vazias de cremes para pele, para o corpo, para o cabelo.
Percebi que o gesto de catar lixo segue, pelo menos para aquela mulher, um ritual de aproveitamento e fantasia. Se de um lado, empilhado, está o lixo que alimenta o corpo, que sustenta a cria; de outro, delicadamente alinhadas, belas embalagens apontam para a humanidade que nela não feneceu.
Voltei para casa enredando pensamentos.
Livrei-me do excesso, doei roupas, dividi pão. A máquina. Bem, a máquina continua parada, mas ainda alimenta meus sonhos de costureira, é o meu pote de beleza.
Talvez potes e máquinas façam parte da urdidura da vida que nos une e separa.